O Atleta, o Aluno e Aquela Ali.
Jun 10, 2020
-- “Bom-dia Maria, tudo bem com você?”… Nada.
-- “Ela não deve ter me ouvido.” Falo alto para justificar a falta de resposta.
Logo na sequência entra Paulo. Desta vez a comunicação acontece. Ele faz questão de descrever quebras, tempos e detalhes de como irá fazer para obter a melhor performance no WOD de hoje. Mas é Maria quem me preocupa...
Continuo o procedimento normal - que na verdade já não é mais procedimento e sim como eu sou - anunciando com sorriso e alegria cada pessoa que acha que veio apenas treinar.
-- “Deveria ter dado a pulseira vermelha para Maria”. Penso a todo momento.
-- “Deveria ter feito o que?” Paulo questiona.
Mais uma vez me dou conta que ando pensando em voz alta. Mas pouco importa, Paulo é pulseira verde. Sua saúde física e emocional faz por merecer tal reconhecimento.
2 anos atrás ele era amarela. Fraco, introvertido e sem vontade de fazer amigos. A parte física veio rápido. Sempre vem comparada a emocional.
-- “Ganhei 4 kilos desde que comecei; e hoje quero quebrar meu PR de terra. Estou sentindo que é hoje”. Continua Paulo para quem queira ouvir.
Extrovertido. Aí já foi um caminho mais longo. Por muito continuou pulseira amarela devido à sua dificuldade em conectar com algo que não fosse uma anilha.
-- “Maria no canto. Celular. Olho na tela. Tenho que fazer algo.” Penso desta vez. Acho eu.
-- “Bom dia meu povo lindo.”
Não preciso nem olhar para porta. Sei que é João entrando. Sua saudação já se tornou marca registrada. Agora tenho de dividir minha atenção. João acabou de receber a cor laranja. Fator social saudável porém ainda não achamos uma forma de dizer para ele o quanto é importante que não coma merda todo dia!
-- “Pergunta do dia João: o que você comeu antes do treino?” Já sei a resposta.
-- “A verdade ou aquilo que todo mundo fala?” Responde ele com um humor que desarma.
Depois de mais de 4 mil interações ao longo de 6 anos, sei que a tríade pode mudar vidas. Vi obeso ter tanquinho, tímido virar pop, egoísta ter prazer em partilhar.
-- “Treino, alimentação e interação João. Falta um, cai todos!”. Quantas vezes ele ouviu isso de mim? Nota mental: mudar a abordagem!
-- “10. 9. 8. 7...” Toca a sirena para a hora do fitness. Enquanto a contagem regressiva começa na sala, meu olhar busca Maria.
Gargalhada. Panelinhas. Olhar indiscreto no corpo alheio. Divisão da turma em novatos. Onde está ela em meio a tudo isso?
-- “Sejam bem-vindos ao show do meio dia” Ouço o coach anunciar ainda sem que eu encontre Maria.
-- “Fuga geográfica!” Penso ou falo? Pouco importa.
Uso esta expressão toda vez que sinto que alguém está fugindo fisicamente de sua presença. E acerto mais uma vez. Maria espera os corpos se mexerem para sair do banheiro e não ser notada da mesma forma em que não quis ser vista ao entrar no box.
Ao fazer isso, aquela ali acha que continuará a ser apenas um pronome demonstrativo sem que haja uma história ou interação necessária.
-- “Maria.” Abro minha boca ao mesmo tempo que entro em seu olhar. “Vou fazer dupla com você ok?”
Não ia malhar. Estava com a roupa errada e tinha uma reunião na sequência. Mas só vejo aquele amuleto vermelho no braço de Maria e sei o que devo fazer.
Me questiono se minhas perguntas não estão saindo na entonação correta. Agora são duas perguntas sem respostas. Ela me ouve?
-- “Eu não vou colocar peso.” Diz Maria depois de ver que eu continuava ali.
-- “Maravilhoso! Na verdade estou mega cansado também. Achei a dupla perfeita para hoje!” Dou uma piscadela e um sorriso. Não funciona, nada de volta.
O coach explica a dinâmica: enquanto um realiza o exercício cabe a outro só incentivar, trocar vibrar, gritar. Verbos que Maria desconhece ou faz questão de não conjugar em público.
-- “Mira em um ponto fixo. Olha aqui no meu olho.” Correção que julgo perfeita para um snatch ou para desabrochar uma alma tímida. Então a uso.
Aos poucos, quando ela não conseguiu mais lutar, quando o cansaço a fez vulnerável, a gente se viu. Consegui ouvir seu bom dia em alto e bom tom. Sua alegria em ouvir meu convite para dividir a barra com ela. Estava tudo ali, depois da íris. Eu é que tinha de estar aberto para sentir e insistir.
“Beautiful day” entra em nossos corpos e se mistura ao suor e escuridão da sala ao fim da aula, tocando em alto e bom tom. U2 nunca foi tão apropriado. Era um dia lindo.
Ao olhar seu corpo apoiado em um braço, noto a pulseira cada vez mais amarela, mais amena, mais permissiva.
-- “Obrigado por não desistir de mim.” Ela fala baixinho pois tem medo de que ela mesma ouça.
Envolvo meus braços em seu momento humano e crio um abraço. Mais uma vida tocada.
A cada interação que fazemos, cada pessoa que deixamos passar, devemos entender nossa responsabilidade, nossa contribuição.
Uma pessoa doente não é apenas o atleta que não socializa, o aluno que não tem força ou aquela ali que não quer ser vista.
Cabe a você diagnosticar o que para sua empresa, para você e sua comunidade são sinais de alerta.
Vermelho; triste. Verde; forte e humano ou amarelo infeliz? Não importa o linguajar do diagnóstico e sim o ato de diagnosticar.
De nada adianta uma história se não existe sensibilidade para entendê-la. Fazer exercício rápido é o pretexto. O que mais você consegue enxergar?
-- “Até amanhã Maria.”
Recebo de volta um sorriso com dentes e um olhar que me vê.
-- “Até amanhã!”
Triagem. Diagnóstico. E amanhã começa o tratamento. Que dia feliz!